- Era uma vez... Era uma vez, um lobo muito esfomeado, tão esfomeado que a sua barriga estava colada às costas... O lobo trazia o lombo escorregadio do suor da fraqueza e vinha coberto de moscas dos cavalos. Certo dia, encontrou-se com o seu compadre Chibinho, anafado, gordinho e lustroso e perguntou-lhe:
- Então, Chibinho, onde andas tu a comer? Estás assim tão gordinho e lustroso e eu, assim tão magrinho, amarelado e cadavérico, só com a pele e ossos, como vês?
Os compadres não se viam dias-há, desde o último encontro numa festa de casamento, lá para os lados do Fundo da Manca, no meio dos manégatinhos e péga-saias.
- Sabes, Lobo, ando bem escondido num buraco fresquinho da rocha e só de lá saio para comer os figos maduros da minha figueira e beber a água da fonte!
- Como? Tens uma figueira e uma fonte?
- Sim, e estão bem escondidas! É um segredo que não vou revelar a ninguém, pois, como o compadre bem sabe, a comida está muito escassa.
- Mas não revelas o segredo ao teu bom compadre Lobo, que, como vês, está só com a pele e ossos, quase a deixar este vale de lágrimas!
- Não, não posso...
- Nem ao teu bom amigo e compadre?
- Já que insistes tanto, e sem um pouco de comida vais pela certa morrer, revelo o local onde está a figueira brava, carregadinha de figos maduros. É no Fundo da Manca, ao lado da nascente onde os pardais e as galinhas de mato das redondezas vão matar a sede, quando o calor os sufoca no desfiladeiro.
As raízes da velha figueira estão metidas nos húmidos buracos das rochas e assim vão resistindo a esta seca que vem matando a nossa terra. O Lobo ouvira o relato da tal figueira, que ostentava folhas ainda verdes e cachos de figos maduros a escorrerem o mel para o chão - segredo que o seu compadre Chibinho guardara bem guardado, um ror de anos.
- Sabes, Lobo, até os pardais da Ribeira Seca vão lá comer os figos mais maduros!
- Tem graça! - falou o Lobo faminto, com a saliva a escorrer-lhe pelo focinho sujo da terra amarelada dos campos - tenho passado várias vezes pelo Fundo da Manca, à procura de alguma coisa para comer, mas só vejo tamarindeiros com as copas cheias de tamarindos amargos como fel!
- Sim, como já te disse, a figueira está bem escondidinha, num buraco da rocha. Só eu sei o atalho que lá vai dar...
Após um longo diálogo, os dois compadres e amigos resolveram marcar um dia para irem ver a figueira e comer o que restasse dos figos maduros, " tirar a barriga da miséria".
Foi marcado um domingo, o que vinha a seguir. O lobo esperou que a semana passasse... Chegada a data, ainda o Sol mal tinha nascido no Morro do Lombinho, o Lobo foi acordar o compadre e deram início à caminhada até ao Fundo da Manca, local onde devia ficar a tal figueira.
Comeram à pressa umas fatias de cuscuz que sobraram da véspera (o Chibinho ainda tinha alguma comida em casa) e puseram-se a caminho para a penosa viagem, subindo montes, atravessando vales e secas planícies, por entre os espinheiros bravos que rasgavam a fina e amarelada pele do faminto Lobo. O dia já ia a meio. O Lobo estava arrependido de se ter metido em tamanha aventura."Para quê? Para lá chegar e nada encontrar" - dizia, amargurado!
- Sabe, compadre, vou parar aqui mesmo, neste local, nesta boa sombrinha do tamarindeiro. Quero morrer descansado, mesmo sem comer os figos maduros. Não tenho mais forças para andar. O meu coração está aos pulos, a querer saltar pela boca. Quero morrer aqui, quietinho, mesmo no meio destas moscas dos cavalos.
O Chibinho olhou para o seu compadre, um desbaratado pela vida e explodiu:
- Seu preguiçoso de um raio, seu faminto, calaceiro e mais adjectivos qualificativos... Agora que já vejo a figueira, lá em baixo, carregadinha de frutos maduros é que vais desistir da viagem e da vida! Não e não, não deixo... Vamos saír dessa sombra e caminhar. Não vês que as cabras podem deixar caír algum pedregulho lá de riba da rocha para cima da tua cabeça?
O Lobo, fraco, triste, faminto e envergonhado, reuniu as suas derradeiras forças, sacudiu do lombo os manégatinhos, as péga-saias e as lapadeiras e pôs-se a caminho, atrás do seu compadre. Até dava dó vê-lo, de olhos vermelhos do pó da caminhada.
Abriu os olhos e viu uma árvore muito verde, carregadinha de frutos maduros. Os ramos vinham até ao chão. Bandos de pardais banqueteavam-se com os frutos mais maduros que pingavam para o chão um mel viscoso... O lobo correu para a figueira e começou a devorar todos os frutos que estavam caídos no chão!
- Tenha cuidado, Lobo! Olha que a tua barriga está muito vazia!
O pobre animal devorara, sofregamente, todos os figos do chão e lançou-se aos que pendiam dos ramos mais altos, aonde andavam os pardais dos coqueiros.
- E agora! Como vamos colher os figos dos ramos mais altos, sem uma cana de carriço ou vara de chaluteira para lá chegar?
O Chibinho afinara a garganta e um som ecoou pelo Fundo da Manca:
- Figuerinha tique-tique...tique-tique...
- O que estás a fazer Chibinho?
- É o grito para os ramos da figueira ficarem ao nosso alcance!
Na verdade, o alto tronco da árvore foi-se encolhendo e os ramos ao nível do chão. O Lobo acabou de comer o último figo e, dizendo "figueirinha tique-tique" foi alcançando mais ramos e mais figos maduros...
- Toma atenção, Lobo! Quando tiveres a barriga cheia é só dizeres "figueirinha nai-naine". A árvore volta crescer, ficando os figos resguardados dos outros animais do campo. Enquanto o Chibinho ia dando as explicações, o comilão do Lobo enchia a sua pança de figos, até mais não poder, não dando atenção às explicações do seu interlocutor, que se pusera a caminho, pois a noite já rondava o desfiladeiro da Manca.
O Lobo abanara a cabeça para sacudir as moscas e o compadre deu por entendida a mensagem. De barriga cheia, dormiu à sombra da figueira até ao raiar de um novo dia, já com as gotas de orvalho pingando das folhagens sobre as suas orelhas cobertas de pó. O Sol reflectia-se nos barrancos de terra branca do vale e os pardais rondavam a fonte. Já com fome, resolvera trepar à árvore...
- Figueirinha nai-naine!... Figueirinha nai-naine!..
E a figueira a subir, em vez de descer...
- Mas é para descer, figueirinha!
A figueira continuou a subir, a subir cada vez mais... Subiu, subiu, atravessou as nuvens, os altos picos, que nem mil canas chegariam até lá, e o Lobo foi dar de caras com S.Pedro, no Céu, no seu trono dourado.
O Lobo ao enxergar as longas barbas brancas do apóstolo, exclamara, surpreendido:
- Nhá mãe! Estou no Céu! Estou perdido!
S. Pedro coçou as longas brabas brancas, deu algumas ordens aos seus súbditos e, olhando as nuvens que passavam; ouvira a explicação dada pelo Lobo...
- Olha lá, meu trapalhão, vou mandar-te de volta à tua terra!
- Mas como, S.Pedro? - perguntou-lhe o recém-chegado, muito envergonhado.
- Não te vou empurrar lá para baixo, não! Vou mandar arranjar uma corda muito comprida, um farnel de cuscuz para a tua caminhada, que vai ser longa, e um tambor de pele de cabrito, para me dares um sinal logo que pises a terra firme do Campo da Preguiça, está bem?
- Sim, sim...
O Lobo parecia ter entendido a explicação de S. Pedro que trazia nas mãos a pesada chave do Paraíso.
Deu-se início à descida... O tempo estava bom. As nuvens, léguas abaixo, eram apenas farrapos no ar, como as penugens das bombardeiras, em dia de vento. S. Pedro, lá em cima, ia folgando a corda à medida que o Lobo ia descendo, pendurado numa bolsa. Desceu dias e noites e, já a ver lá em baixo a ilha de S. Nicolau, foi abordado por um bando de ruídosos e negros corvos voando em círculo. Um deles veio fazer-lhe companhia, trazendo no bico um calamã cheio de manteiga de terra e falou para ele:
- Caro amigo Lobo, eu sei que trazes cuscuz no teu bornal e, com um bocadinho de manteiga fresca que tenho, ia bem uma fatiazinha, não é verdade?
O corvo voara mais de perto, com o calamã no bico, para que o Lobo visse o seu conteúdo.
- Dou-te a manteiga e tu dás-me uma fatia do teu cuscuz. Depois tocas o tambor para eu ouvir o seu som, está bem!
- Não posso tocar o tambor, porque é o sinal para S. Pedro largar a corda...
- S.Pedro está destraído e não vai ouvir-te, pela certa...
O Lobo comeu o cuscuz com manteiga de terra, na companhia do corvo, sob o olhar curioso dos restantes e desatou a tocar tambor.
Lá em cima, S. Pedro, ouvindo o sinal combinado, mandara soltar a corda.
Os corvos afastaram-se, deixando o Lobo na sua vertiginosa queda para o Campo da Preguiça, que se via lá em baixo, amarelado e pedregoso. Ainda faltavam muitas léguas para a terra firme e o Monte da Centinha ainda não se via. O Lobo, ao sentir-se desamparado e gozado pelo corvos, em debandada para o Monte Fora, lembrou-se de uma frase do seu compadre, nos momentos de apuro:
- Pedrinhas lajes (pedras sem arestas) fiquem de fio (de arestas para cima)...
Todas as pedras do Campo da Preguiça ficaram viradas para cima, à espera do Lobo, que se estatelou no chão, no meio de grande poeirada, não muito longe do local onde os pardais debicavam os figos maduros da figueira do seu compadre.
O que o trapalhão do Lobo queria dizer era:
- Pedrinhas de fio (com arestas cortantes) fiquem deitadas...
Moral da história: A gula é sempre castigada....
In http://www.islasdecaboverde.com.ar/san_nicolau/adriano_gominho_narrativas/6_rochinha_a_primeira_escola.htm
u primeiro dia da Escola da Rochinha